O direito de se espantar

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SÃO PAULO | Deveria estar feliz porque a F1 acabou – que campeonato horrível – , ansioso pela final em que o Palmeiras pode ser campeão – apesar de não ter time para isso – e exultante por o Grande Prêmio ter levado o Troféu Aceesp pela reportagem de Renan do Couto batendo o ‘JN’. Tudo isso passa diante do caos que se vive em SP em que estudantes só querem um lugar para estudar e são alvo da violência descontrolada do governo e sua PM desde a noite de ontem.

Um amigo é professor e se vira mais que nos 30 para dividir seus esforços em duas frentes: a da manhã é mais puxada e o leva para o extremo da cidade numa escola municipal; a da noite é mais próxima de sua casa e se destina a um conhecido e renomado colégio católico. Não tem muito tempo, ele conseguiu uma excursão vespertina para que os alunos de um determinado período da primeira fossem visitar a segunda. Merece destaque seu esforço: ele que foi atrás disso, em fevereiro, e depois de oito meses, sem ter seu pedido solicitado à prefeitura de ter um mísero ônibus aceito, pagou do próprio bolso o aluguel do transporte e honrou sua função de educador.

A visita teve seus pontos traumáticos, mas foi rica, disse ele. O momento-chave foi quando o ônibus passou a Paulista. Aquela juventude que não tinha mais que 16 ou 17 anos prostrou-se nas janelas para admirar aquela avenida. A esmagadora maioria não tinha jamais visitado o principal ponto da cidade onde moravam. Os olhos abertos e os queixos caídos eram espelho de uma realidade irreal. Assim continuaram quando chegaram ao destino e viram que o espaço da outra escola era quase um castelo estudantil com tudo à disposição dos outros que tiveram melhor sorte.

Pedi ao amigo que descrevesse. “Tudo era ‘uau’. Um grupo de meninos quis meio que se enturmar com as meninas do outro colégio, chamando-as de ‘princesas’. Óbvio que receberam um olhar de desprezo. Já as meninas trocaram de roupa, tiraram o uniforme da prefeitura e ficavam no celular fingindo que eram riquinhas. Muitos ficavam perguntando o valor da mensalidade. Eles enlouqueceram quando viram quadra.”

Prazer, molecada, esta é a São Paulo que lhes traz o encanto e o espanto como quem de nós vai pela primeira vez a Nova York ou Paris.

Neste colégio particular, contou este amigo, há uma leva de professores que não lhe são muito afeitos justamente porque sabem de seu engajamento em manifestações – e tais colegas docentes entendem que greve, por exemplo, é “coisa de vagabundo”. Então torna-se risível concluir que é bastante complicado para certa parcela da população, branca, abastada e supostamente letrada, entender o que pensa e como age quem está do outro lado da linha do Equador social: que os negros, pobres e dificilmente alfabetizados com correção veem o futebol como única plataforma de inclusão ou ascensão.

Por outro lado, a polícia militar usa dois pesos ao cruzar essa linha, ainda que aperte o spray, desça o sarrafo e acione o gatilho em ambas como recurso único de um aprendizado típico de escola pública. Se é óbvio que sua ação é desproporcional e descabida quando se trata de quem tem pouco para dar, os registros de seu trabalho do lado de cá precisam ser dados. Tem um caso de um cara que estava em casa em plena terça-feira de manhã, preparando-se para sair rumo ao trabalho, e viu certos vultos passando pela janela de vidro temperado no quintal da frente. Sorrateiramente, destravou o cadeado e abriu, espantando-se com os três ou quatro policiais que ali estavam de arma empunhada. Enquanto notava que a vizinhança acompanhava o caso, quis saber o que estava acontecendo. Sem resposta, o cara negou a entrada dos militares, que só diante de insistência revelaram: havia uma denúncia de roubo seguido de invasão. No fim das contas, a invasão foi deles, que simplesmente erraram a casa desse cara, que como diria a música, sou eu.

De forma que grande parte dos que estão nesta linha, pois, não precisou batalhar para literalmente poder estudar, tampouco passou por histórias em que se sentiu mais ameaçada com a presença da polícia do que sem.

Já tem um mês que a gestão (?) de Geraldo Alckmin e sua política de completa erradicação da educação determinou o fechamento de escolas em todo estado sob o eufemismo de uma reorganização que não existe ou foi discutida com este povo. Diferente da letargia de quem não vê água em sua panela batida ou acha normal superfaturamento de metrô em linhas paradas, um movimento de indignação se iniciou para que estas escolas fossem ocupadas. A reação em cadeia viu um movimento que este amigo professor nunca esperava: a juventude de lá da linha não lhe parecia engajada ou interessada o suficiente em defender seu espaço.

Ainda que não fosse sua função, os alunos e os colaboradores que arrebataram passaram a tratar a escola como casa. Aulas passaram a ser ministradas e, dizem, foram muito mais eficientes do que aquelas aplicadas pelos livros. O governo teve tempo de repensar sua decisão e até mesmo de chamar para o diálogo. Mas preferiu passar a lição de sempre, depois da insólita situação de pedir aos que queriam estudar que deixassem os colégios: mandar suas tropas às ruas em uma aberta estratégia de guerra de um quase-estado de exceção. Jovens sentiram o poder da pimenta, o susto da bala e pressão das algemas, também aplicadas a quem estivesse nos mais diversos pontos das trincheiras para cobrir a beligerância da PM.

A grande mídia usa dos mesmos recursos para desfocar a história tratando-a ingenuamente como confusão ou confronto. A grande mídia joga a história como nota de rodapé, não faz cobertura em tempo real e nem mesmo se preocupa em fazer pautas que seriam, digamos, curiosas para um caso como este: a dos filhos de PMs que estudam em escolas do estado. A grande mídia é o escudo da ação do governo. Grande mídia, essa.

E quando a gente junta tudo, fato é que este último mês se inicia à altura da desesperança que tomou conta do ano todo, com uma sociedade doente que nem o melhor dos planos de saúde é capaz de curar – e isso é notório quando se percebe que há um punhado de gente, a que não entende picas de nada além do seu mundinho caviar, bate palma e posa para foto com uma corporação com resquícios de ditadura que acha que bater em estudantes e manifestantes é lição bem dada a vagabundos. É muito além de uma divisão partidária e de defesa de posição política que é falha em todos os lados: é uma questão de princípio, de humanização, de civilidade e de caráter que se coloca em xeque. O governo não aprendeu porra nenhuma com as manifestações de dois anos atrás. Muita gente aprendeu tudo ao contrário. E quem quer aprender sente a dor física e moral.

Nós começamos todos os dias em desvantagem. Ver as gerações mais novas que simplesmente querem o direito de estudar sendo reprimidas com tamanha violência é o tal do 7 a 1 que virou símbolo extremo da nossa derrota. É o 7 a 1 também para a molecada que foi à luta e talvez enxergasse um futuro além do futebol que as tiraria desta vida. A molecada do outro lado da linha não tem direito de se encantar. Só de se espantar. Como todos nós que têm o mínimo de consciência do que estão fazendo com nossos moleques.

Comentários

  • Esse excelente texto mostra que repórter de automobilismo pode ser tão bom ou melhor jornalista do que muitos “globais”, “vejentos”, e “falhistas” (com a mesmo). Perfeita análise. E não posso deixar de registrar: tem gente que comentou aqui que acha que a “grande” mídia protege o governo federal ! ou é míope ou não entende nem manchetes, quanto mais textos.

  • “e isso é notório quando se percebe que há um punhado de gente, a que não entende picas de nada além do seu mundinho caviar”

    E, com essa frase, uma boa argumentação toma um viés político-ideológico completamente desnecessário. Naturalmente que violência é e sempre deve ser combatida. Mas pergunto: e a sociedade hipócrita em que vivemos? Sociedade onde alguns jornalistas ou “pensadores” tratam de rotular um processo democrático de “golpe”?

    E qual o real motivo da tentativa de reestruturação escolar? Não seria, talvez, uma tentativa em readequar e de melhorar o nível de uma educação pífia? Tentativa essa fruto da incapacidade destes “santinhos estudantes” em responder com educação ao professor, em sentar e fazer parte do processo de educação, em achar que “aqui tudo eu posso”?

    Sei lá, sabe. Claro que utilizar bombas contra estudantes é errado. Isso não se discute. Mas eu realmente me pergunto se uma medida extrema (como a reorganização proposta) não é fruto exatamente do comportamento hipócrita desses mesmos estudantes: “quer mudar? Vou protestar, não pode! Mas aqui dentro aquele profeswsor que não sabe b**** nenhuma tem que calar a boca, porque se eu quiser ficar em pé e conversar o dia todo, f***-se!”

    Agora, fugindo da grande mídia, tu deves ter lido, mas recomendo o artigo do Valor Econômico sobre as pedaladas, as repetidas tentativas da área técnica em avisar que estavam fazendo m****, e o atropelamento consciente do governo federal nestes avisos.

    Confesso que nem sei o porque perdi meu tempo digitando essa resposta. Mas o fato é simples: todos vivemos em uma hipocrisia velada, num mundo faz de contas, fecha o olho pra uma coisa mas abre os berros para outra, que deveria sofrer igual reprimenda. Infelizmente, a política não me representa. A mídia sectária não me representa (você faz parte dela, quer goste ou não). Os acéfalos que não tem a capacidade de discutir se dando por conta dos pontos positivos e negativos de dois lados opostos, não me representam. O segredo da vida, e do sucesso, está no equilíbrio. E é exatamente isso que falta para nossa sociedade. Toda ela.

    • “Confesso que nem sei o porque perdi meu tempo digitando essa resposta.”

      Darei a você um motivo: para que eu saiba que há outras pessoas que pensam como eu, principalmente em relação ao seu último parágrafo.

  • O governo estadual falhou – e muito!, em diversas frentes: quis impor um projeto de ensino sem consultar alunos e pais, fez um mínimo de pesquisa pífias para sustentar a decisão pessoal de seu secretário de ensino, demorou para abrir diálogo, etc.

    O movimento, por seu lado, também errou – e continua errando. Insuflado por profissionais da bagunça esquerdistas como a UBES, a Apeoesp e o black-blocks, vários grupos ainda permanecem nas escolas, agora já sem nenhum motivo; agora são os pseudo-estudantes que recusam dialogar.

    Quanto à questão social mais profunda, lamento o preconceito demonstrado pelo Sr. Martins.
    Nem todo pobre é preto, nem todo preto é pobre, nem todo pobre é burro e quem não tem interesse em se alfabetizar e crescer na vida não merece mesmo nenhuma chance.
    Imaginei que o dito jornalista, se veio das castas mais baixas, deveria ter uma visão mais lúcida do valor do trabalho árduo.
    Se não veio, então é mais um intelectualzinho metido a transgressor e revoltado (só com a falta de caráter do PSBD, mas nunca com a ladroagem explícita do amado PT) enquanto toma seu leitinho com pera feito pela empregada da mamãe.

  • O governo de São Paulo age muito errado. Mas a indignação aqui é seletiva: o governo federal corta mais de 10 bilhões e nenhuma uma aqui sobre isso! Vai esquerda! Parabéns!

  • Sensacional o texto. O alento que temos é que o esforço, as porradas suportadas e os sprays de pimenta na cara da juventude que se engajou no protesto conseguiu dissuadir o ilustre Governador de seus nefelibáticos planejamentos “educacionais”. Pelo menos, por hora.

  • Discordo de você, Victor, quando demonstra esse pessimismo. Pelo contrário, acho fantástico essa molecada, que todo mundo sempre tachou de alienada, interessada nos rolezinhos e no funk ostentação, demonstrar que quer participar da vida pública, que quer uma educação melhor, que defende seus direitos e não aceita decisões autoritárias vindas de cima para baixo.
    Para mim, independente do que acontecer daqui para frente, eles ganharam e a classe política em geral – e o governo Alckmin em particular – perdeu. Eles são o futuro, os governos encastelados nos seus palácios, federal ou estadual, são o passado. Como já cantava o Chico, o tempo passou na janela e só Carolina não viu…

  • Eu fico sempre pensando porque quando vamos rumo ao século 21, acabamos retornando ao século 18 ? Por que a elite brasileira ainda prefere trabalhadores escravos e braçais ? Sou de família pobre, como a grande maioria Meu pai era metalúrgico e sempre se engajou em movimentos sociais e até na época da ditadura, teve gente atrás dele em casa. Vejo que em 3 décadas a educação no país só vem caindo a qualidade, mesmo em colégio particulares, que fingem ser o “crem de la crem”, mas não passam de locais pagantes de mensalidades. Isso serve e muito para as universidades também, que afloraram de uns 20 anos pra cá, parecendo farmácias ou botecos de tantas que existem, mais como é coisa pra pobre, que seja de péssima qualidade. Afinal é só para pegar o canudo mesmo e dizer que tem “nível superior”. A uma vertente no Brasil que não sai da época da escravidão. Da época em que a grande maioria das pessoas realmente trabalhavam por um prato de comida, que ainda existem isso em muitos cantos, mesmo em estados considerados desenvolvidos como SP, Paraná, Minas, entre outros. Há sempre reportagens que mostram ações de libertação de pessoas que trabalhavam como escravas, confecções, entre outra atividades, fazem reféns nossos irmãos de países vizinhos. É muito cômodo para quem domina a economia sempre dizer que a grande maioria da população recebe miséria porque não estuda, porque não tem interesse em aprender, porque não tem qualificação para justificar um bom salário. Que sempre tem vagas que as empresas não conseguem preencher. Tudo mentira ! Adoram uma mão de obra semi escrava, bem barata mesmo. Ficam toda hora reclamando de direitos trabalhistas, de benefícios que tem que ficar dando para segurar pessoas na empresa, que tem que negociar salários todo ano, etc, etc, etc. só choradeira. A grande maioria das pessoas, mesmo com estudos, vai cair no mercado de trabalho para ser repositor de prateleira, balconista de lanchonete, auxiliar de produção, ajudante geral, limpeza, atendente de comércio em geral, estoquista ou expedição, pedreiro, servente de pedreiro. A grande maioria das vagas de empregos no país, são para trabalhadores braçais, porque como se compra tudo de países da Ásia e até do Oriente Médio, não há necessidade, na cabeça dessa gente de terem pessoas com inteligência e com ideias criativas. Isso é coisa para somente determinada parcela da população que se julga realmente superiora a outra e que por mais que um pobre tente se destacar, sempre será imediatamente colocado no lugar devido, que não deve se atrever a pensar e só fazer o que lhe mandar. Afinal: manda quem pode e obedece quem tem juízo. Essa é a máxima brasileira. Eu tenho grana, mando e faço o que quero. O resto que se lasque. Enquanto tivermos uma elite segregadora, que pensa que tem e deve viver como personagem de novela de época, com uma casa com dezenas de empregados lhe servindo o dia todo. Que acham que somente seus filhos tem direito de pegar os melhores cargos, de preferência no setor público, que de uns anos pra cá, quadruplicou a concorrência e antes ninguém pensava nisso. Que filhos de pobres devem ser naturalmente serem reposição de mão de obra das profissões de seus país, longe de mim querer denegrir qualquer trabalho, mais só para mostrar que aqui há sim um sistema de castas tipo indiana, imposta veio que na obscuridade e se a população realmente não se sacrificar como fizeram no fim nos 70 e toda década de 80, se não fizerem como os franceses no século de 18 ou tantos movimentos sociais que transformaram a Europa e os Estados Unidos, que eram arredios a ideia de civilidade e direito de vida de seus trabalhadores. Teremos uma educação sempre de fachada e limitada e nunca sairemos da sombra das grandes fazendas e senzalas que ainda dominam o cenário estudantil, trabalhista e empresarial.

  • E eu continuo esperando saber dos simpatizantes do tucano o que eles acham da falta d’água na Cantareira e do superfaturamento do metrô.

    Devem achar um problema político, de certo.

    Brilhante texto, Victor!

  • Existe uma grita geral pela melhora da educação. Como não existe mágica, esta melhora vem com uma melhor utilização dos recursos disponíveis. Criar centros especializados é uma busca desta melhora. Impedir a demissão dos professores nota “zero” é uma contradição a este discurso político. O dilema é:” gastar para manter mais prédios e reduzir o investimento no aluno ou reduzir o custeio em edificações e utilizar este recurso em investimento? Não existe verba ilimitada em nenhuma área. Com a redução da arrecadação não existe verba para manter o estado atual das coisas (ou os professores irão abrir mão de aumentos salarias para manter em dia o orçamento), portanto faz-se necessário uma melhor utilização dos recursos. Quanto à disparidade social, não é o fechamento de 10% dos prédios (não das vagas) que irá solucionar a questão. Com relação ao discurso da integração eu estava até acreditando, quando foi citado a questão da quadra. Em todos os bairros existem escolas com quadras (não estou dizendo que todas as escolas tem quadras) e existem tanto parques, quanto Ceus, quanto escolas que abrem no fim de semana para sua utilização. Se os alunos querem politizar a questão que mantenham as ocupações nas escolas, mas não venham fechar a paulista (que eles nunca viram na vida, mas estão no meio da rua) pois se todas as demandas fossem para fechar as ruas de São Paulo, não existiria estado de direito e sim anarquia. Se exigir civilidade de quem quer apenas se encantar e conscientizar é demais, aí para o mundo que eu quero descer.

  • A juventude que depôs Collor na década de 90 está nas ruas novamente por uma causa justa e é desprezada porque suas pretensões não se alinham aos interesses econômicos de quem apoia o governo paulista.
    É curioso que sempre julgam os jovens pela inexperiência. Pode ser, mas estes são movidos pelo espírito progressista, questionador e, por vezes, inconsequente. E desta forma ainda que torta, porém vibrante, vai em frente e com disposição para brigar porque são eles sim os mais afetados.

  • Belo texto, mas essa imprensa é a mesma que está tratando com desprezo e minimizando os reais problemas do Governo Federal, bem como ignorando o grupo pacifico acampado em frente ao Planalto e os recentes protesto dos Caminhoneiros. Isso só é mais um pouco do que já estamos acostumados, como diz o ditado: “Pau que bate em Chico, também bate em Francisco”.

  • Você só iniciou um tempero do que é o resto deste bendito país. São Paulo apenas está mostrando como é a educação e a diferença social que vivemos. E ainda acham que algum dia vamos chegar a ser um país decente? Desse jeito? Será que merecemos com um Estado que acha que o povo é seu refém e faz oque quer? Parabéns pelo texto, e teria espaço até para mais, e força para a garotada pela luta contra a intransigência de alguém que foi votado para auxiliar a população e se nega a reconhecer isso.