A República da Delação

boca-fechada

SÃO PAULO | Nestes tempos neuróticos, a primeira coisa que a gente faz ao acordar é tirar o carregado celular da tomada para verificar o que está acontecendo no mundo via redes sociais. Mal dá tempo de tirar a remela, e uma enxurrada de notícias dos mais variados tipos estralam os olhos. É preciso estômago forte e uma boa dose de paciência – para fazer, principalmente, uso dos itens de desativação de notificações e silenciamento de perfis – para aguentar os últimos tempos.

Mas a semana começou com um episódio emblemático que foge ao beligerante embate político e que, no fim, converge a ele. O repórter Felippe Facincani, da Rádio Bandeirantes, surge em áudio esculachando o Palmeiras e seu mais recente vexame, a derrota por goleada para o primeiro-comandado Água Santa. O jornalista usa de hipérboles e xingamentos jocosos durante os pouco mais de 4 minutos. Felippe não estava no exercício de sua função e soltou isso em um grupo de WhatsApp. Alguém do grupo vazou.

A primeira coisa que me saltou aos olhos remelentos e estralados é que tipo de filho da puta se preza a espalhar um áudio de caráter particular, feito para um seleto grupo de, supostamente, amigos e/ou colegas de trabalho. 99% das pessoas normais e que fazem uso de aplicativos como o WhatsApp, segundo uma pesquisa que eu mesmo acabei de bolar e que garanto o resultado, estão inseridas em patotas como estas, de trabalho, de amizade, familiar ou com um gosto específico, e lidam com este tipo de brincadeira todos os dias. Não creio que, por exemplo, não gostar de algo divulgado entre quatro cantos de smartphone dê o direito de alguém compartilhar o que ali está, ainda que não tenha tido a intenção de foder com a vida do autor, para que este seja execrado em praça virtual e corra riscos no exercício de sua profissão ou até mesmo físicos. O país cairia, de fato, se todas as DMs, mensagens particulares ou estes grupos tivessem a caixa preta aberta. Não sobraria um para contar histórias, fazer piadas preconceituosas ou mandar nudes.

No caso específico, não importa se eu ou qualquer um de nós que não estava participando daquela comunidade tenha gostado ou se sentido ofendido com a fala de Facincani – se vale o registro, eu, palmeirense e galhofeiro que sou, achei genial e engraçado pra caralho. O que me preocupa é falta de privacidade que temos vivido e que nos faz desconfiar e ter um pé atrás até mesmo quando a gente acha que está com pessoas de nossa confiança. Não deixa de ser uma delação pela qual Facincani passou: seu ‘crime’ foi entregue, como se ele não pudesse tirar o colete de repórter e afastar o microfone para ser simplesmente um ser humano como qualquer um de nós, exagerados, aficionados, coléricos, debochados. Humanos.

Facincani teve de excluir sua conta no Twitter, passar cadeado no Instagram e olhar para todos os lados e verificar se não tinha um Japonês da Federal esfregando as mãos para levá-lo à sala de depoimento; recluso, o repórter já está, em seus pensamentos e em como sua vida acaba sendo devassada sem ser culpado. Não tenho qualquer informação a respeito de sua posição na empresa, mas sei bem de um caso em que foram pedir cabeças no mesmo grupo de comunicação porque a opinião do jornalista ia de encontro com os interesses indycados por acordos.

Nestes tempos mais que neuróticos, em que uma cor representa inimizade e os sujos querem tirar os mal-lavados, o Brasil virou uma República da Delação. Outro dia, soube que há comunidades no Facebook em que pais incentivam seus filhos a identificarem nas escolas professores que tenham tendência esquerdista para que sejam devidamente demitidos do cargo; dois amigos tiveram de explicar, em entrevistas de emprego diferentes, se eram a favor do impeachment. Isso remete aos primórdios da raça, que transforma a vizinha que fica debruçada à janela ou pega um copo de vidro para ouvir melhor pela parede como investigadora e fiscal da vida alheia ou, em época pós-moderna, o torcedor visceral que caça e vasculha mensagens antigas de seus alvos em 140 caracteres. O delator, travestido de vizinha, torcedor ou pai de aluno inocente, acha que está prestando um papel imprescindível à sociedade como se ele não tivesse deslizado jamais, com ou sem objetivo de prejudicar algo ou alguém.

Já sei de um punhado de gente que vai passar a ficar quieta nestes grupos temendo ser o próximo Felippe da lista, o que nos transforma em personagens amedrontados de nós mesmos. Porque todas as nossas ações estão sendo vigiadas 24 horas por dia como em um Big Brother, e se a edição ou a câmera captarem qualquer movimento em falso, o caminho é o voto da imensa casa, o dedo apontado dos anônimos com toga. Facincani, como outros colegas, está no paredão sem ter pensado em entrar neste programa da vida irreal. A justiça torta vai avaliar seu castigo enquanto quem lhe entregou se refestela por ser um vilão mau caráter.

Os vilões maus caráteres brotaram aos montes nestes tempos muito mais que neuróticos numa república de caguetas, dedos-duros e X-9’s. Com muito orgulho e com muito amor.

Comentários

  • Me desculpe caro repórter, mas na minha época conversa privada era aquela realizada ao “pé-do-ouvido”, as pessoas não entendem, ou não querem entender, que no mundo virtual não existe nada “privado”! Quando você fala o que quer com quem quiser, deve saber que corre o risco, muito grande, de ouvir o que não quer!! As pessoas que tem projeção pública, devem zelar muito mais por suas palavras e opiniões, até porque, “quem fala muito dá bom dia á cavalo”!

  • Victor:

    Fomos surpreendidos pelo meu filho, 8 anos na época, reclamando que o estavam colocando em uma “lista” de bagunceiros e q ele não queria ser ajudante da professora e fazer isso também. A professora disse q era uma ideia para diminuir a bagunça. Ela elegia 2 ajudantes e cada um fazia uma lista dos colegas bagunceiros (quem decidia colocar ou não era o ajudante usando seu critério subjetivo de 8 anos de idade), se o aluno estivesse nas 2 listas sofria uma punição (no mínimo uma humilhação pública).

    Questionamos a coordenação q disse que era certo, pois as “pessoas de bem” tinham que aprender a delatar quem fizesse algo errado para as “autoridades”.

    Era uma escola particular… Quase todos os outros pais concordaram com a ideia… Em menos de uma semana meu filho foi pra outra escola…

  • Não conheço o tal jornalista e nem tenho interesse em ouvir o que ele falou num grupo do WhatsApp.

    Respeito sua opinião e só peço que, por favor, não confunda alhos com bugalhos ou dê a entender que toda delação é um mal em si.

    As delações premiadas da operação Lava Jato colaboram para sanear o país, livrando-nos dos governantes e asseclas mais corruptos da história universal.

    Viva Sérgio Moro. Viva a República Federativa do Brasil.

  • O caso dos comissários da Stock car não seria semelhante?
    Porque pelo que entendi do caso, eles usaram o Cacá Bueno como chacota também num grupo de WhatsApp.
    Achei um absurdo, porém, os comissários também tem uma vida particular e podem torcer para o Rubens Barrichello ou Átila Abreu, por exemplo e falado sobre o Cacá e o Thiago Camilo da mesma maneira.
    O que acha? E parabéns pelo texto.

  • Victor,

    Isso que foi feito com o Fellipe é sacanagem….
    Não é delação…..
    Através da delação vamos conseguir prender o bandido de 9 dedos e o poste que ele conseguiu eleger com o dinheiro roubado da Petrobrás ……
    Não podemos ser a republica da Sacanagem mas temos de ser sim a Republica da Delação…….
    Hj a esquerda é vitrine, então que se vire….

    Abraços

  • Ótimo texto, parabéns!
    Essa maré lava jato, vai lavar mais do que queriam os prós e os contras, vai fuçar tudo e todos, independente de credo político, ou sigla. Afinal, quando o Politburro foi vender ações da Petrobras em Wall Street, esqueceu que teria contas a prestar aos investidores internacionais e ao FBI, que não é a Federação dos Baixinhos Invocados não, é briga de cachorro grande. Então fodam-se os espertalhões. Só tem malandro aonde tem otário, e sejamos realistas, são milhares de malandros tapeando milhões de otários.

  • Vazar conversa de WhatsApp é sacanagem mesmo, pura má fé ou maldade. Mas nada a ver com delação premiada entre criminosos, que é uma arma de defesa da sociedade. Sem isso mutos vigaristas, canalhas e criminosos ficariam impunes. E quanto a Sérgio Moro estar â margem da lei só pode ser brincadeira, pois o STF bem que tenta mas raramente consegue lhe dar um “puxão de orelhas”.

  • Excelente texto! Hoje em dia, não podemos ter opiniões podemos ter, a menos que sejam de acordo com o que pensam a maioria, ou os paladinos “da democracia” de plantão!
    Parabéns!

  • Isso é foda mesmo, será que a pessoa que vazou o audio está se sentindo bem depois do que fez? Essa semana tb foi noticiado um caso que ocorreu nos Los Angeles Lakers, em que um jogador gravou o colega contando alguns casos extra-relacionamento e jogou o vídeo para o publico. Eu me pergunto, pra que??? É muito bizarro esse tipo de situação.

  • Brilhante, Victor, brilhante! Eu sou um dos que selecionou quem vai ler minhas postagens no facebook já que eu me senti muito agredido por pessoas que foram devidamente excluídas do meu círculo de “inimigos virtuais”, não por discordarem do meu posicionamento mas por expressarem de forma grosseira e preconceituosa a sua divergência sobre assuntos de conjuntura nacional.
    Aí entra o tal de Sérgio Moro, elevado à herói nacional que vem pedir desculpas sobre liberação de grampos como um estudante que tomou bronca do bedel da escola (STF) e que é elogiado por muitos mesmo à margem da lei. Que mensagem um magistrado quer passar para a sociedade? Vale tudo? Como vc pontuou, viramos uma pátria de alcaguetes, condição que em outro tempo e outros meios seria premiada com uma passagem para o além.
    Nesse caso do repórter foi ridículo e quem vazou deveria responsabilizar-se pelos danos e pelo ato sem sentido.
    Não sei onde chegaremos mas o horizonte parece muito complicado.

  • É Victor , realmente está virando uma FOBIA sem freio, acho que deveria
    ter uma forma de zerar e começar de novo, porem é impossível. Vamos viver
    como antigamente, que se falava , cara a cara , porque diante de um teclado
    todos ficam valentes ( delatores ) , discutem , xingam , delatam, eta…
    Quanto a Fobia , o limite foi a médica que interrompeu a consulta da nêne,
    porque a mãe era de esquerda. É o sujo punindo o mal lavado.
    Parabéns pelo texto.

  • A merda é que a “justiça” e a “sociedade” inocenta de cara, e transforma em santo justiceiro defensor da moral e dos bons costumes e inúmeros adjetivos qualificando o sujeito, quando na verdade o cara é o maior filho da puta, cagueta e dedo duro, tão ou mais bandido que o delatado, acusado, apontado. Ou nada disso.
    O fato que na “vila” existe uma premissa: Cagueta morre cedo.

  • Penso que estamos num tempo em que as coisas estão escancaradas…e as redes sociais potencializam muito bem isso…é através delas que os covardes criam coragem, os “bondosos” se transformam em poços de ódio, onde todos julgam, punem ou condenam…
    Em resumo: Apenas está escancarada a distância entre o que as pessoas dizem ser e o que elas realmente são…

  • É realmente assustadora a perspectiva de estar à mercê de pessoas mal intencionadas ou descuidadas, e ver uma “conversa” privada se transformar em instrumento de luta ideológica (a minha ideologia é o Corinthians, na perspectiva de seu post).
    Todavia…
    A podridão do mensageiro desqualifica a mensagem?
    Quer dizer, que há roubalheira no Futebol, há, né?

  • Muito boa a explanação a respeito da exposição de particularidades, mas eu queria chamar a atenção para outra coisa: a forma de pensamento de alguns sobre equipes pequenas ou do interior, como se fossem um lixo e “proibidas” de se inserirem no seleto grupo dos grandes.
    Para nós, que vivemos no interior e sabemos da luta dessas equipes, dói saber que no pensamento (lembrando que essa divulgação jamais deveria ter ocorrido, é de caráter partucular) destas pessoas, as coisas tem que se resumir ao “principal centro”, como se o resto fosse um amontoado inútil que não tem direito a nada.
    Simplesmente, o feudo ou um sistema de castas indiano parece estar sendo criado na mente de nossos futebolistas…

  • Não concordo com você. Esse cara foi muito FDP. Se encontro ele na rua vou parar na delegacia de tanta raiva que estou dele. Olha, jornalista não pode gravar um áudio desses, me desculpe, não tem essa de inocência. Qualquer idiota sabia que iria vazar. Sou da área. Ele achou que todo mundo ia achar lindo, e veio com essa desculpa. Que seja processado por tanta falta de respeito com o Palmeiras, o Agua Santa, o Paulo Nobre e a cidade de Diadema. Que seja demitido da Bandeirantes e nunca mais arrume emprego em um grupo grande de comunicação. Pessoas assim não merecem. Ou você acha correto faltar com respeito com times, cidades e pessoas?

    • Sem questionar o mérito da sua participação, ok!
      Mas ficou esquisito na parte em que diz “e que nunca mais arrume emprego em um grupo GRANDE de comunicação”.
      Como assim?
      Em pequeno pode, é isso?
      Dois pesos e duas medidas então?
      Falaséério!

  • Nos tornamos uma república de caguetas ou foi a Internet que ampliou algo que já éramos? Não curto o Lobão mas ele tem uma frase boa sobre o Brasil, “no país da fofoca, opinião é tabu”. Isso aqui sempre foi a terra da fofoca e do linchamento público (no futebol então nem se fala). Sou da opinião de que a Internet não cria comportamentos à parte, só reflete e amplia o que as pessoas sempre foram.