Apagando com o apagão

apagao1SÃO PAULO | A mochila estava nas costas, e a conversa se dava com o amigo quando às 10 e poucos da noite a academia começou a piscar, aguentando uns 50 segundos mais, com erro para mais ou para menos, do que as casas ao lado e as ruas. Ali teve até quem pensasse que o piscar da luz que lembrava aqueles filmes em que o alarme das usinas denotava a iminência de uma catástrofe podia ser algo até parecido com isso, trocando o som da sirene pelos gritos dos bombados que não largaram os pesos ou os supinos. Vieram as piadas normais de que a conta não havia sido paga, e o gerente da academia, figura das mais agradáveis, aproveitou as pouquíssimas luzes que sobreviveram por causa do gerador para sair cantando “I Don’t Want Nobody, I Don’t Want Nobody Baby”, trocando o “but you” que se seguia por um “tchu-tchu”, e o pessoal ficou lá, esperando que aquilo se tratasse de algo momentâneo, tanto o apagão quanto a apresentação de balada do gerente.   

Vieram as primeiras informações de que a zona setentrional da cidade estava às escuras, das redondezas à Freguesia do Ó. Consegui fazer uma ligação, para casa, mas ninguém atendeu. Depois o celular morreu. Ligação, só emergencial. Em vão, então, minha tentativa de twittar. Insisti, ainda. Fui à sacada, tentei tirar uma foto com o celular, mas todas saíram escuras, sem flash. Celular de merda, pensei, e fiquei uns dez minutos tentando descobrir onde regulava o flash daquela porcaria, então me dando conta que dez minutos importantes haviam passado, e niente de luce.

Tinha uma moça cuja silhueta não era das mais magras ainda em cima da esteira e um cara que ainda usava a ergométrica. Outros dois aproveitavam o feixe daquela luz de gerador para ver onde pegar o peso apropriado, o gerente, naquele humor que só ele tem, pedia desculpa aos alunos que ainda mantinham esperança, uns até falavam em pular na piscina, e a vida passava, mais de meia hora passava, e aquele breu que se estendia por toda São Paulo denotava já uma série de pensamentos, até mais avançados, políticos, literários e filosóficos.

apagao2Primeiro porque tivemos de dar importância unicamente para a rádio. A rádio, hoje, é um veículo quase tão relegado quanto os jornais impressos, nestes tempos de “fast food”, de consumo rápido de notícias, o teaser e a impressão de que se sabe por completo do que aconteceu, tempos de internet e TV. Ambos dependentes de megawatts ou quilowatts, e a rádio lá, Bandeirantes, Jovem Pan, Globo, reunindo até jornalistas esportivos que passaram a ancorar suas equipes em torno do apagão que já se alastrava pelo sudeste tupiniquim e outros tantos ouvintes, em torno de um aparelho, como se os anos 50 e 60 materializassem um longo flashback daquelas famílias que ficavam à sala para acompanhar o programa de áudio preferido. Qualquer rádio de notícia ontem deve ter batido recorde de audiência. 

Na saída da academia até o carro, a cena destoante. Alguém deixava o rapaz de camiseta regata na porta da academia, e ele descia atônito, olhando para o espaço incrédulo, lançando um quase olhar de indignação pela ausência de luminosidade. Abriu os braços, o bocó, ainda segurando a garrafa com proteína na mão direita. Ficou um minuto lá, o bocó, esperando que num estalar de dedos a luz voltasse só para que ele fizesse a sequência de tríceps e peito, sendo que bastava a ele exercitar a mente. Mas a mente, enfim, deu um estalo, e o bocó voltou para o carro e foi embora. Creio que, neste momento, o bocó há de entender a situação, do contrário é muito mais do que bocó.   

Nos sete ou oito minutos até a casa, a rádio do carro cantava a situação do caos, relembrando aquele apagão de uma década, buscando as causas e as consequências. Depois, sem ligar ou tirar fotos com flash, ao menos o celular sintonizou na frequência modulada, e a fome bateu, e bateu forte. As quatro velas que já estavam de prontidão serviram para preparar um jantar, e a mãe cozinhava o arroz enquanto eu preparava o molho com queijo para aquele risoto esperto, e o pai chegava do trabalho, contando que havia ficado preso no metrô, mas sorte dele que estava parado justamente na estação. Foi à geladeira e achou a lata de cerveja que já não estava no ponto ideal, abriu e começou a espremer laranja para complemento da refeição improvisada quase à meia-noite.

E lembrei de Saramago. Saramago ensaiou uma vida onde todos eram cegos, mas bem que podia escrever um complemento em que a luz deixasse de ser presente. Imaginei o caos, aí, sim, que seria neste momento de nossa existência regredir uns tantos séculos se a transmissão de energia elétrica acabasse, assim, sem avisar. Homens da idade das cavernas tendo de se readaptar a um novo mundo, buscando alternativas, e sem a internet e a TV, que se tornariam, na verdade, coisas supérfluas diante da necessidade prioritária de alimentação, após nosso lindo povo saquear os supermercados e terminar com sua comida em estoque. O arroz pronto me fez encerrar o pensamento que ia longe. Sentei no chão, mesmo, sei lá por que, talvez por ter me revestido do espírito de um australopitecus, e mandei ver. Mãe e pai cortavam em cubos o que restou do provolone, e lá estava a família reunida como nos últimos anos não esteve.

Lavei a louça e me deitei no sofá com o celular do lado. Falavam as autoridades, o prefeito, o diretor da ANEEL, o representante de Itaipu via comunicado, o jornalista que é mais que a notícia, e peguei no sono, mas aquele sono em que ainda se consegue prestar atenção no que se ouve; o cérebro da gente é uma maravilha, diria minha avó, se eu a tivesse conhecido. Uma hora e tanto depois, passando calor e desconfortável, me preparava para o sono completo. Foi quando a luz voltou.

Diferente do que pensei, a cidade voltou em silêncio. Desci, abri a porta, olhei ao redor. Duas ou três pessoas ali no prédio faziam o mesmo. Tinha gente até ali na praça, conversando. O computador saía do stand-by, a internet e a TV de volta, o programa do Jô que mostrava justamente a entrevista com Ronaldo, os parcos negos no MSN, o Twitter só atualizado de quem estava lá pra cima, quase nenhum e-mail na caixa. Os sites, todos, manchetando em letras garrafais o apagão, e enfim a noção de que havia um certo apavoramento por parte de alguns, iniciada até pelo jornalista que é mais que a notícia, desesperado no caminho para um encontro de negócios, e nego até falando que hackers invadiram Itaipu, e um amigo me contando que a esposa de um outro jornalista reclamava deste por conta do plantão extraordinário, e ele explicando o óbvio da profissão, e ela não entendendo, achando provavelmente que se tratava de uma desculpa. E eu logo vi que horinhas sem luz levam a uma ausência de raciocínio, quase uma lobotomia, porque a grande maioria das pessoas se acomodou na confortabilidade e na rotina do mundo e passa mais o tempo a reclamar do que fazer, a ser o passivo, esperando que o mundo faça o que deveria ser feito por elas.

No fim das contas, o apagão mostrou que muitos apagam junto, por simbiose. Saramago bem que podia traduzir naquele seu modo peculiar esse novo enredo da vida moderna.

Comentários

  • Realmente, Victor, é muito bom ver o ser humano com as calças na mão, desprotegido, desplugado… Exceto os que, realmente, tiveram problemas sérios com o apagão, como gente que estava internada e outros casos onde a falta de energia elétrica trouxe problemas reais.

    Sou um dos que dependem quase que totalmente de energia elétrica. Vivo na internet, trabalho nela, me divirto e me informo no pc. Mas, já fui outra pessoa também. Cresci no interior, andava descalço, tirava do pé e comia com a mão, pescava e tomava leite da vaca.

    Episódios como este são ótimos para que as pessoas não percam a memória, nem a perspectiva. Para que se lembrem que são pessoas que dependem de outras para ‘viver’, ou mesmo, para que se levantem e batam no peito para afirmar que não dependem de ninguém para ‘sobreviver’, que são homens com capacidade e independência, e não aparelhos ligados a um fio.

    Alguém já disse uma vez: A medida é o ser humano. E este apagão serviu como um belo lembrete.

  • Vitrola, sensacional o texto. Eu confesso que usei tanto o radio neste dia que nem me dei conta de que realmente parecia o inicio de um “ensaio sobre a cegueira”.

  • EU NÃO SOU BOCÓ NÃO
    eu estava achando que era uma falta de luz rapida por isso esperei até ver que realmente a coisa era mais seria.

    E SALVE O TRICOLOR PAULISTA

  • belo texto. pois é, temos uma dificuldade imensa de não fazer nada, não é mesmo? é quase como se fosse um pecado. eu tentei isso, mas logo depois fui pro twitter… maldito vício!

  • Maravilhoso!!! E este trecho “porque a grande maioria das pessoas se acomodou na confortabilidade e na rotina do mundo e passa mais o tempo a reclamar do que fazer, a ser o passivo, esperando que o mundo faça o que deveria ser feito por elas.” serve para tantas situações nesse país… e coitado daquele que tenta fazer e não reclamar, ou seja, ir contra o maldito sistema… ganha o apelido de encrenqueiro!

    bj

  • Excelente o texto.

    Cara isso me lembrou aqueles filmes de catastrofes que so sobram as radios para orientar os poucos sobreviventes, que como vc disse a maioria das pessoas apagou junto com a luz.

    Agora espantoso que um problema em uma usina de energia pare o país todo, acho que ta faltando uma destribuição melhor nisso ai.

  • Oi Victor. Não conhecia sua página, vi um tweet do Mauricio Stycer.
    Bem, esse apagão mexeu mesmo com a gente. É coisa louca isso do medo que bate quando as coisas saem fora do lugar. Talvez a gente saiba que, no fundo, nos apoiamos em certezas frageis demais. Quem sabe a gente não tenha a certeza de que, o futuro, só poderá ser uma volta às origens. Será? Bem, com abstrações bruxuleantes não nos sentimos “bocós”, e isso nos dá a sensação de que não nos entregamos ao enredo lacônico da vida moderna. Será…? Enfim, deixemos para Saramago o que aos mestres cabe, não?
    Abraços!
    Seu texto foi um momento de alento aqui!
    Keila

  • Bom texto, Victor.
    Moro no nordeste, não sofri com o apagão de ontem, mas pelas notícias na TV imagina-se o caos… pena que sempre é o caos que nos leva a refletir… O que diria Thomas Edison ao ver como está o mundo que ele ajudou a criar? Como na obra de Saramago… “em terra de cego, quem tem olho é rei”.

  • Estamos mal acostumados mesmo, e eu ainda fiquei irritado porque a minha lanterna era fraquinha e eu não conseguia iluminar do outro lado da rua !!!!!

  • Ótimo texto, há.

    Aqui (RJ) o apagão foi geral. De 22:20 até 03:40 (hora que a energia voltou no meu bairro) no escuro –‘ No começo a gente aqui em casa achou que o problema era no bairro, tentou ligar pra uns amigos pra confirmar, mas nada. Até que enfim um amigo do meu pai atendeu no Nextel do serviço e contou que tava acompanhando pelo rádio do carro dele, e que o apagão tinha atingidido mais lugares

    Incluindo o Paraguai Oo

    Daí tive a idéia brilhante de ligar um abajur (à pilha) e beem depois me toquei do celular do meu pai, que tem rádio. Fiquei acompanhando o desenrolar da coisa pela CBN, depoi enjoei e coloquei na Band News FM do amigo Fábio Seixas, porque eles ficaram atualizando mais tempo sobre o RJ.

    Um pequeno doomsday vivido, e eu espero que superado heuhe

  • Uhauhauhau, eu estava voltando para casa, cada cruzamento era uma emoção, piscava o farol, buzinava e quando ia passar vinha um carro a toda aproveitando que todos os radares deveriam estar desligado.

    Cheguei em casa e para minha sorte havia carne moída previamente aquecida no mircoondas pelo meu pai, comi com pão (eu adoro pão com carne moída) e uma latinha de Bohemia que estava gelada ainda!!!

    Esperei um pouco e resolvi ir dormir, ante brinquei: “Quando começar aquele sono gostoso volta a luz e agente tem que levantar para apagar a casa toda!!!” Dito e feito… quando peguei no sono o quarto acendeu (uhauahua, eu devo ter apertado o interruptor quando entrei, mesmo sabendo que tinha luz, força do hábito!!!)…

  • Amigo Verdão,

    Gostei, muito, do seu texto.

    Ontem à noite ocorreu algo semelhante aqui em casa. Tenho Esposa e quatro filhos (Idades: 20 – 17 – 6 – 3).Os dois menores moram comigo e os dois mais velhos moram na Nova Zelândia.

    Pois bem, ficamos nós quatro conversando durante horas, deitados na cama de casal, como nunca haviamos feito antes. E, apesar de todo inconveniente causado pelo apagão, foi uma delícia.

    À luz de velas pudemos – eu e minha esposa – escutar com 100% de atenção as palavras proferidas pelos nossos pequenos e amados filhos.

    Sugerí, inclusive, que deveriamos fazer isto, pelo menos uma vez por semana. Com ou sem outros apagões que, com certeza, virão!

    Um grande abraço e, mais uma vez, parabéns pelas mal traçadas…

    Eloi Gomes