Minha Burkina

SÃO PAULO | O programa começou pouco depois da meia-noite, horário de Uagadugu, com a negra vistosa e simpática, de cabelos longos e tranças finas, em pé, alternando a leitura do seu roteiro com o olhar feliz para a câmera central, indicando ali que a produção não dispunha da tecnologia do teleprompter. A bancada no formato de meia-lua apresentava ao lado dela outros dois componentes, a caráter, sorrindo e gastando o francês deles, ‘historique’, ‘magnifique’, e eles se aproximavam do microfone preso à mesa, lembrando um debate, e elogiavam, acho, o desempenho da equipe que horas atrás havia dado a maior alegria esportiva da vida deles.

A câmera voltou a focar a moça, que não precisou seguir o papel para levantar o copo plástico em sinal de brinde e dar uma bicada na bebida que deve ter saído da garrafa verde de champanhe com rolha de cortiça a seu lado esquerdo. Os demais seguiram o ritual, e a atração, ‘Plateau CAN 2013’, continuou com o debate efusivo na língua nativa nos estúdios da Radiodiffusion Télévision du Burkina, a primeira emissora pública de informação ‘du Faso’.

Burkina era Alto Volta quando nasci, e a mudança do nome há quase três décadas não impediu a sequencial sensação de guerra civil imposta pelos governantes e comandantes ávidos por golpes militares. País com a maior taxa de analfabetismo da África, é também um dos mais pobres do continente e dependente da agricultura, que sofre com a seca incessante naquela região do nordeste continental. Blaise Compaoré é o presidente que matou o anterior, Thomas Sankara, para chegar ao cargo em 1987, o que me faz concluir que não é das pessoas mais afáveis e pacíficas.

Burkina ganhou minha atenção por causa do Rali Dakar, quando a competição ainda era disputada em sua origem e um dia resolveu incluir o país como seu destino, chegando à então desconhecida Bobo Dioulasso, segunda principal municipalidade local. Cobrir aquilo à distância, com Rodrigo Borges, era engraçado. A gente sempre foi meio pancada e bitolado com cidades e capitais, e Bobo, além de sermos nós, virou uma referência. Um dia vamos a Bobo, prometemos, e Burkina virou um xodó, além de ter uma sonoridade boa. Quando o Dakar abandonou a cidade, o país e a África, perdeu sua essência. Morreu para nós, que nunca vimos numa CVC da vida como faz para ir a Bobo em suaves prestações. Assim acompanhamos o que Burkina vinha fazendo no futebol, sem nenhuma esperança de que fosse além algum dia e quase em tom de galhofa. Até ontem, naquela semifinal contra Gana e o árbitro.

A apresentadora voltou e chamou a palavra do presidente, e Blaise apareceu no ‘Plateau’, até porque controla a TV. Em tom calmo, como quem havia conquistado um latifúndio de chuchu em seu país, expressou sua felicidade pela classificação à final da Coupe d’Afrique des Nations contra a Nigéria. A atração do fim de noite também foi às ruas para mostrar também a alegria do povo. As pessoas reunidas em frente a TV tocando as vuvuzelas locais, as crianças e os adultos nas ruas que em muito lembram as favelas mais miseráveis de nosso país, até a parte mais nobre da cidade apareceu, com os carros chiques tendo dificuldade para trafegar em meio à multidão, onde todos esqueceram o sofrimento que provavelmente nenhum de nós há de passar. Gente que vai esperar o domingo como um prato de comida ou de água, ou o salário de menos de 300 obamas, ou a cama ou o teto que não tem, gente ansiosa e eufórica simplesmente por causa de um jogo de futebol.

Futebol que nos abre os olhos para realidades de pobreza e condições subumanas que não deveriam existir. Futebol que nos enche os olhos não só pela beleza, mas por emoções como essas de Burkina. E outras que ainda estão por vir no domingo, contra a Nigéria em frente à TV, tomando cerveja no copo plástico.

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