A dignidade do fim da vida

SÃO PAULO | Era moleque e, como a maioria da galera da minha sala, esperava todo santo junho ou julho não só pelas férias. É que era época de Rockgol, e às 23h era hora de rir. A inteligência fora do comum de Paulo Bonfá e Marco Bianchi para narrar um campeonato de cantores renomados e anônimos era igual à perspicácia de colocar no mesmo patamar os renomados e os anônimos que lançavam seus primeiros clipes. Passou o tempo, e como, e quantos de todos nós até hoje não olham para Toni Garrido como a Chiliquenta ou guardam apelidos como Max Telefone de Contato, a Goleira de Handebol, a Musa Nissei Sansei, Rufus, Juninho Papito, Nhanha, e muitos outros, e Cléston. Clééééston. O cara que adotou o apelido como nome para a carreira.

A MTV era nosso reflexo na TV, o meio de comunicação mais moderno a que a gente tinha acesso até então. Era nossa língua, a música da rádio em imagens, a informação sobre os shows, os acústicos e os luaus, os programas especiais para estações do ano, o sexo falado na madrugada sobre uma cama redonda. Era Astrid, Cuca, Gastão, Sabrina, Marina, Cazé, Massari, Chris Couto, Chris Nicklas, Soninha (aquela, sim) e Zeca na primeira leva, que se seguiu com louvor com Didi, Mion, Fernanda, Sarah, Cicarelli, Luiza, Penélope e Léo Madeira e outros.

A TV que era a semelhança do jovem pedia para desligar o aparelho em prol do livro e ousou num país atrasado mostrar um beijo entre iguais. Prima pobre, abusava do cromaqui e dos efeitos toscos para levar um programa simples ao ar, usava o mesmo cenário para várias atrações, importou a lista dos dez mais votados em um programa de uma hora e apresentou nomenclaturas e tendências. Era Teleguiado, Supernova, Disk, Mochilão, as propagandas/ calhaus feitas em desenho, e era de fudêncio, didiabólico, de chapar o coco, e se não pagavam sapo, ao menos beijavam, cool, Beavis, aquele primeiro garoto que dava enxaqueca.

Mas de um bom tempo pra cá, a coisa desandou, e foram poucos aqueles que se mantiveram fieis. O UHF e a parabólica deram lugar ao cabo, e tem cabo com tanto canal que nem tem a MTV. A queda também se junta ao crescimento absurdo da internet e das redes sociais. Junta tudo: quem queria clipe antes passou a achar fácil num digitar de YouTube; programa entre casais do mesmo sexo caiu em desuso; e, principalmente, a utopia da diferença se foi. Perdida na gestão, a emissora se viu obrigada a dar números e audiência perdendo suas raízes e sendo mais do que se via nas concorrentes. Já desmilinguida, buscou sobrevida na vertente do humor e trouxe Adnet, Tatá, Paulinho, Bento, Dani Calabresa e até Thunderbird de volta. A última tentativa foi resgatar Hermes e Renato, justamente a última grande atração antes do início da derrocada. Já era tarde.

Enquanto pôde, a MTV se desdobrou para esconder que estava doente. Mas quando assumiu o estado terminal, respirou e preferiu viver. Preferiu reviver. Chamou quem fez parte dela e conseguiu divertir e se divertir, do jeito daquela velha boa e grande MTV, a MTV que cresceu junto com a gente. A MTV debochou de si mesma, cutucou os defeitos, lembrou os momentos históricos e buscou os arquivos pessoais dos ex-apresentadores para transformá-los em programas geniais. No clima de nostalgia, a MTV conseguiu inovar e apresentar a melhor programação da TV nos últimos meses. My-MTV. Our-MTV.

My-MTV foi em 2005 ou 2006. Dois Rodrigos e eu fomos participar do Neura MTV, uma competição com um trio de amigas nossas à época. Na última pergunta, estávamos perdendo e precisávamos responder certo e bater rápido a sirene para ganhar. A questão não era muito fácil, virei aos colegas e disse que ia simular o movimento de acionar o botão para elas fazerem o mesmo e tentarmos ganhar com a pontuação do provável erro delas. Foi o que aconteceu, e aos sagazes vencedores, um lustre. Para os padrões MTV, sempre moderninho. Nada muito funcional, mas está na sala de casa desde então.

A MTV faz o último Furo agora à noite. Por meio de Thunder, iniciou seu discurso derradeiro. Admitiu que a tentativa de sempre se renovar acabou sendo seu veneno fatal. Depois, Bento disse que o fim da MTV na verdade se trata da perda total de relevância para a televisão. Nos minutos finais da última atração, aloprou sobre os escombros os que estão por vir na nova passagem e previu o futuro dos que estão “na mesma merda”. Em meio à festa e às fotos, deixou um computador ligado com o Twitter liberado para qualquer um postar trechos do epitáfio. E foi para o último show, ainda que não seja o melhor deles, mas se preparou para ele de forma honrosa. A #saideiramtvbrasil não precisa chegar aos TT’s. A MTV se saiu bem, saiu melhor ainda, saiu como nasceu, marcante e jovem.

20 e poucos anos depois, a MTV morreu dignamente. A MTV soube morrer.

Comentários

  • Desde sexta-feira à noite, estou assistindo à MTV, como não fazia há anos. Saudades para sempre do Gordo, Sabrina, RockGol, Didi Wagner, Mion, Super Liga de VJ´s, Adnet, DISK MTV e tantas outras coisas…
    Muito obrigado à todos que fizeram a MTV BRASIL (porque acho que a “nova”
    MTV não vai durar nem 5 anos…).
    VMB´s, com aquela qualidade e dinamismo, alegria e felicidade em fazer, nunca mais verei… uma pena, foram demais, espero que um dia lancem em algum formato para curtir de novo. Um recado:
    GLOBO, presta atenção, não mata o talento do ADNET, ele é como a MTB BRASIL – pura energia, deixa o cara ser ele mesmo.
    Abraços à todos, YO MTV.

  • A MTV se perdeu em 1998/1999, qdo deixou de ser uma emissora musical e tentou “conquistar o mercado” com programas imbecis de moda, pré-adolescentes entre outros e acabando com programas bons como Clássicos MTV, Furia, Gás Total entre outros; chegaram ao ponto de acabar com exibição de vídeo clipes, depois viram que a besteira foi grande e agora tentam voltar, mas sem o mesmo sucesso; hj é uma sombra apenas do que quis ser. É bom lembrar que a MTV nunca foi “rebelde” como muitos pintam aqui no Brasil; sempre foi uma ponta de lança das gravadoras para venderem seus “produtos”, mas inegavelmente por meio de algumas pessoas e pouco programas, valorizou por algum tempo a música em suas diferentes vertentes e buscando sair do óbvio. Se pensarmos no avanço do You Tube e a chance de qualquer um ver seu clipe preferido a qualquer hora, de forma segmentada, sem precisar se render à fórmula “aborrescente” que a MTV preferiu seguir, temos o quadro que leva o fim da emissora, uma boa ideia, mas muito mal executada por aqui.

    Pelo visto a “nova” MTV vai incorrer no mesmo erro da “velha” MTV que é de querer ser um canal de comportamento pré-adolescente e que cause repercussão na internet (sem necessariamente ter qualidade para isso) e esquecendo-se do principal, que é a música. Claro que, hoje em dia, encontra-se música em qualquer lugar, principalmente na internet, mas acho que o canal tinha de ser mais voltado para a música em todas as suas vertentes e não procurar ser um canal de realyties, quase que só de humor e outras coisas que não tem muito a ver com a proposta original.

  • A MTV jaz junto com a boa música. Pra mim, o auge da emissora foi sem sombra de dúvidas os anos 90, quando tivemos a última safra de bandas boas no mundo, como Pearl Jam, Alice In Chains, Oasis, Nirvana, Radiohead, Smashing Pumpkins, Stone Temple Pilots, Soundgarden, Rage Against The Machine, e por aí vai… O canal já estava banalizado tal qual diversas outras emissoras por aí, mostrando falsos artistas, um bando de bucéfalos que dizem fazer música, como Justin Bieber, Justin Timberlake, Shakira, Lady Gaga, e outras aberrações sonoras, meros geradores de propaganda e rótulo de embalagens, e música, música de verdade mesmo, que é bom, nada… Hoje em dia não há nada proveitoso, acho que é por isso que não estou tão triste com o fim da emissora. Estaria triste se isso estivesse ocorrendo em 1998, 1999…

  • Aê, Victor, seu texto tá lá no Diário do Centro do Mundo, hein?

    http://www.diariodocentrodomundo.com.br/a-mtv-soube-morrer/

    legal, gosto muito do pessoal de lá.

    Mas sobre a MTV, acho que muito dessa situação tem a ver com decisões da Abril sobre a direção que o canal tomou nos últimos 10 anos. Aliás, Abril que fechou a gravadora não porque estivesse tendo prejuízo, mas sim porque não estava tendo lucro suficiente.

    E essa situação da MTV (ultimamente sem muito do “M”) parece que é mundial, e vem de algum tempo:

    http://www.youtube.com/watch?v=yDZu-dgaaF0

  • Victor, belíssimo texto. Lúcido como sempre.

    A MTV marcou minha infância, lá por volta de 97/98. Fez parte da minha adolescência a partir de 2003. O período 2000-2006,para mim, foi o auge do canal.

    A MTV começou a morrer a partir de 2007, quando deixou de lado os videoclips, dá pra dizer que sobreviveu dignamente até 2009.

    2010 foi a pá de cal. A partir de 2011, nem se fala…

    Descanse em paz, MTV Brasil.

  • Sempre li sem nunca comentar aqui, mas hoje não deu. Tive de mexer os dedos para digitar que teu texto me deu um nó na garganta.
    Não sentirei falta da MTV, mas direi a todos que a vi nascer, crescer e fechar as portas.
    E que me diverti muito com todas as fases,
    Valeu Victor.

  • Lembro da geringonça que era pra fazer a MTV sintonizar em casa, de só poder assistir depois da novela, pois tínhamos apenas uma TV em casa, dos momentos legais em 1994, 1995 até 1999, dos brilhos dos Hermes e Renato, do Teleguiado, Lado B, Top 20, top top nas segundas que eram um martírio, pois tinha a Hebe e eu queria o Top Top, da Tevêzinha velha + antena, nova que comprei em 2004 e foi minha liberdade de assistir MTV, lembro da grana gasta ligando pro Garganta e Torcicolo, gostava muito dos outros programas do gordo, Gordo Pop Show, Gordo on Ice, Gordo a Go-Go, tinha o Piores Clipes do Mundo… Resmindo, a MTV contribuiu muito para a formação de meu caráter. É uma pena ter sucumbido, mas ficará na memória a saudade gostosa, Sabrina… Ainda bem que perdi seu fim, MTV, me despedi cedo, não sou bom com despedidas, teve um momento terminal terrível e um fim, digno de sua história, Me resta um estigma engraçado que compartilho, o mesmo apelido do maior ídolo das futebolices musicais, o grande, o único, o eterno, o semi-deus Clééééééééééééééééston.

    Mais um excelente texto seu, Victor Martins.

  • Triste pelo fim do canal =((

    mas tenho que te dizer, esse fds estava no Rio e vi o Toni Garrido na praia. Na hora veio na minha cabeça o apelido de Chiliquenta kkkkkkkkkkkk

    RIP MTV!

  • A MTV começou a morrer, para mim, no começo dos anos 2000, quando decidiu privilegiar a música popular nacional. Aquilo foi de cagar!
    Dali pra frente, perdi o interesse na emissora.

  • Até antes da MTV, eu via Clip Trip, na Gazeta. Que sofrimento que era quando ia comprar disco: “tem aquele LP que tem a música ‘x’?” Aí o vendedor trazia, mas a versão da faixa, sei lá, era remix ou ao vivo… que raiva!
    Ou ainda quando ia fazer um pão na graxa no meio do programa e, quando eu voltava, estava no meio do clipe de uma música muito boa. Só que… como saber então que música era aquela? Que raiva!
    Depois da MTV, aquela ficha com nome do artista, nome da música, nome do álbum e gravadora aparecendo no começo E no final do clipe revolucionou minha preguiça.
    Mas nunca ninguém comentou… será que só eu sofria desse mal?

  • Caramba, Victor. Esse texto aí foi no fundo.

    Lembro que antes da TV a cabo, eu só conseguia assistir à MTV na cidade dos meus avós, porque lá tinha satélite. E ficavam os primos todos apinhados na sala de TV vendo o supra-sumo dos clipes.

    A outra boa lembrança foi o dia que a Sabrina leu o meu e-mail no ar. Minha paixão platônica do começo da adolescência, falando o meu nome. Puta merda.

    Bons tempos e obrigado pelo texto!

  • O fim da MTV me lembrou aquele filme, “Os Piratas do Rock”: o barco afunda, mas o espírito de juventude e diversão que ele representava permanece na equipe da rádio e nos ouvintes. Depois de algum tempo (anos) achando que a emissora não fazia mais parte da minha vida, os últimos meses me provaram que eu tava errado. Em algum lugar, esse barco ainda vai existir. Apenas em memórias, mas vai existir.
    Foi divertido.

  • Ontem eu senti como se uma parte da minha história de vida, tivesse deixado de existir. Ao ver os velhos Vjs, a nostalgia tomou conta. Na boa mesmo… Por um lado, é uma pena mesmo que ela tenha deixado de existir. Não parecia, mas vai fazer falta! Do outro lado, talvez fosse a hora mesmo de encerrar este ciclo… Como bem disseram ontem no minutos finais antes do apagar de câmeras: “Quem viveu aquela MTV, viveu… Aquela MTV que aprendemos a gostar não vai existir mais…” Eu só tenho a agradecer. Valeu MTV por todos os VMBs, VMAs, Piores clipes do mundo, Gordo e todas as suas variáveis, Disk MTV, Tops 20 Brasil/EUA, Hermes & Renato… yo… o próprio rockgol… e outros programas. Valeu demais.

  • Valeu o texto..valeu MTV…. lembro-me quando a emissora fez um concurso para novos VJs, e premiaram o Rafael do Paraná mais o Léo madeira, só que o tal do Rafael era muito ruim e havia candidatos muito melhores…aquilo me irritou um bocado e acredito que a muita gente…

  • Impressionante texto, articuladíssimo como sempre;
    a MTV marcou uma geração, infelizmente dos cafundós de Nova Friburgo, Rj, não tive a chance de com ela conviver desde que ela nasceu, mas me deu muitas alegrias no que pude acompanhar.
    Parabéns mais uma vez pelo texto irretocável, grande mestre VM.