Copa Linda, 3

NATAL | As primeiras horas de relativa liberdade levaram às ruas abaixo depois do bom almoço. O calçadão da praia é das coisas mais esquisitas por parecer um canteiro de obras. Sem contar que a descida é tão íngreme que restringe a presença de cadeirantes e bêbados em alto grau. O cenário, no entanto, compensa: o mar é belo, estupendo para quem se habituou a chamar de mar aquilo que se vê em Itanhaém ou Praia Grande. A indicação de Felipe Corazza levou a gente ao quiosque 26. Por quiosque, compreenda-se um cubículo restrito, em que cabem no máximo duas pessoas e um fogão de duas bocas. O negócio era encontrar Cassiano.

Cassiano estava sentado e reclinado no muro de concreto da nova casa de seu negócio que a prefeitura ainda não terminou aos vendedores de Ponta Negra. Não foi ele quem respondeu quando chamado pelo nome, tampouco quem pulou de sua cadeira num estilo de fazer inveja a qualquer twist carpado quando falei que conhecia o autor da reportagem que dias atrás havia entrevistado Cassiano. Daniel fez todas as honrarias do quiosque, já pegando a cerveja, abrindo e servindo Gabriel, a mim e a ele mesmo. Daniel desembestou a falar, mas não com aquela eloquência dos nordestinos; as doses de pinga ao longo do dia surtiam efeito. Não escondeu a felicidade de ter ganhado dois clientes no boca-a-boca, que também considerou uma espécie de rede social. “A internet tá bombando”, falou, logo sacando do bolso um saco surrado de fumo e bolando seu cigarro na hora.

Daniel continuou seu discurso de vários assuntos, mas sempre voltava à Copa. O sábado é dia de jogo, e ele fez o convite incessantemente para que Brasil × Chile fosse visto lá. Ressaltou que a TV era de 42 polegadas, “mas não é LCD”. A tecnologia alta, segundo ele, era deixada de lado pelo atendimento. A invitação sempre era terminada com uma antítese. “Não sei se venho, não. Tu sabe, né?, amanhã é dia de diversão e de tomar umas”. Logo tornava a chamar para a partida porque ia levar uns parentes e amigos. Apareceu um japonês lá que chamamos de Kobayashi e queria praticar kitesurf. Daniel sacou de si um inglês que iniciava bem, mas depois partia para a mais pura embromação, e o braço apontado para baixo na direção do instrutor indicavam o caminho. “Não tenho estudo, fiz até o 1º ano, mas aprendi na raça inglês”, gabou-se. A meta de Daniel é ir trabalhar num cruzeiro. Mesmo que isso signifique ficar longe de seus três filhos e de sua mulher, “uma baita duma morena”.

A conversa de Daniel tirou a atenção para o que Cassiano fazia, e só quando a brincadeira do “pega a cadeira aqui e senta no chão” foi feita é que ele retornou à cena. Cassiano permaneceu quieto só esperando um momento de respiro de Daniel para poder falar. Na maioria do tempo, olhava na direção do mar. Quando pôde, falou que surfou muito na vida. Perguntado se não mais, explicou o não: “Eu sou deficiente físico”.

O dono do quiosque aparenta ter 40 anos é daqueles jambos que ganham mais cor com os dias de sol. A sua deficiência não era nada notória para quem mexia as mãos e batia os pés no chão sem problema visível. Continuou a fala. “Eu tive um problema há uns 12 ou 13 anos. Fui assaltado – o cara quis me levar 2,50 – e eu fui reagir. Tomei um tiro”, e o espanto foi maior com o complemento: “Fiquei tetraplégico”.

Recostei na cadeira e franzi a sobrancelha como resultado da incredulidade. Não daquela que desacredita, mas pelo espanto. Cassiano prosseguiu e disse que, depois da operação, sentiu que tinha alguma sensibilidade nas pernas. “Arrumei uma fisioterapeuta muito boa, que foi me incentivando a voltar a andar”. Foi readquirindo a força nos braços usando o espaço de seu trabalho e a inclinada descida para o mar. Por anos fez de uma bengala seu suporte e aos poucos foi dando os primeiros passos e recuperando os movimentos. Então fez amizade com um professor de Educação Física que tem uma academia em Natal. Lá, passou a fazer exercícios de tonificação. “Minha força de vontade foi tamanha que eu fui ficando forte para aguentar o tranco. Tinha vezes que eu tentava andar aqui e rolava lá embaixo. Eu começava a rir de mim mesmo”, e riu.

Ao levantar, a deficiência fez-se perceptível. Para quem parecia entrevado numa cadeira de rodas o resto da vida, tratava-se de uma exceção fabulosa. Seu caminhar, mesmo com dificuldade, é até firme. Daniel fez a gente sair do estado de petrificação com mais uma cerveja, indo para a risada de doer quando deu a dica de como usar um giz ao se estar com uma negra em um quarto.

A noite já caía na praia, 17h50, quando Daniel pedia para não ter pressa e continuar o longo papo e Cassiano resolveu ir. “Eu não fui a semana inteira na academia. E isso vicia, me faz sentir falta”, comentou. Terminou ali de fazer as contas do dia junto com Daniel num bloquinho surrado, e os dois não chegaram a uma conclusão do quanto haviam lucrado. “O que importa é que a gente tá satisfeito. Tá satisfeito e feliz”. E o sábado vinha aí para que as pessoas chegassem, pedissem os vários pratos que podiam fazer, ficassem para o jogo e pudessem tirar uma grana.

Cassiano se despediu e subiu sem apoio nenhum por aquela rota toda esburacada, satisfeito e feliz, para a academia. Para um dia voltar a surfar.

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