Paulista, 807, 802

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SÃO PAULO | Não tinha o porquê de passar em casa para trocar a roupa que, hoje, serviria como uniforme da Renault. Assim que saí da entrevista com o banco que seria meu primeiro trabalho por cinco meses, peguei o ônibus, o metrô, o crachá e o elevador. Bati à porta do 802.

A porta abriu. Tales Torraga me permitiu ver a redação pequena, e lá ao fundo, o mais pequeno ainda Flavio Gomes largou o cigarro no cinzeiro e me cumprimentou. Já havia trocado alguns e-mails com ele naquele segundo semestre de 2002. Ele precisava de alguém no futuro próximo para substituir Everaldo Marques.

Não fiquei muito tempo. Eu teria tempo para ver bem a pequena redação.

Por pequeno, entenda que o 802 do 807 da Paulista é uma salinha de escritório suficiente para abrigar a equipe de então e hoje mal comporta metade da equipe do Grande Prêmio. São duas mesas assimétricas, algumas cadeiras diferentes e nunca muito confortáveis, o jeitão de antigo, a parede amarela, a azul, a laranja, o banheiro cuja descarga chega a gerar medição na escala Richter e o encanamento que vertia água meio amarelada.

A partir de 2003, o canto da outra mesa passou a ser o que eu usava das 8h às 13h. Rodrigo Borges, que veio a ser meu primeiro colega efetivo, revezava o turno e o espaço comigo nas cinco horas subsequentes. Nem imagino hoje começar a trabalhar neste horário com um só cuidando de tudo isso. As coisas mudaram muito: os colegas, a escala, o cargo, o esquema, a visão e a atribuição. Mudou quase tudo. Menos a redação.

OK, alguns detalhes, sim: os quadros com as principais páginas de jornal das coberturas de F1 dos anos 90 ganharam a companhia de troféus, o bico de um F-Ford que, coincidentemente, tem meu nome, um baú e uma penca de Almanaque Warm Up que fizemos impresso. Foram rifados de lá o computador preto, um par de impressoras, fios que não levavam a lugar algum e outros objetos que, se eu não lembro, Gomes menos ainda.

Parei de ir àquele lugar com frequência com o advento da banda larga. Mas com o aumento da equipe e de colegas aqui de São Paulo, comecei a propor nos últimos anos que fôssemos pelo menos uma vez por semana para trabalharmos juntos. Para dar uma cara nova, eu me propus a ir atrás de um escritório de arquitetura, com o qual fiz uma permuta, e um lindo projeto para revitalização do espaço saiu. Só não saiu do papel.

Muito provável que, aparte o fato de que não havia um orçamento disponível para tocar a reforma, a redação não quisesse mudar. Que deixasse, então, ali, viver o grande armário preto da entrada, os quadros do francês Tony e a pintura da brasileira Wilma, o pneu inflável furado ao chão, a coleção de miniaturas, o pistão, o quadro com as credenciais, o armário de suporte da TV, de livros e da cafeteira – que não é a esquentadora de água que fez Gomes se gabar por anos, até que Cláudio Carsughi, um belo dia, soube apoiar o lado certo da força, o frigobar que gela que é uma beleza e suporta uma pinga das boas, a poltrona amarela de tantas histórias e o fax que resiste a tudo isso. E a folha A4 já amarelada ainda colada no lado interno da porta com uma série de itens à pergunta ‘você já se lembrou de…’.

Sim, eu já me lembrei de tanta coisa no dia de hoje que o suadouro dos olhos explica por si só o que vivi com todos. Fotos, nao tenho, e estes 13 anos  vou ter eternizar na pasta vermelha do projeto que ela nunca foi e no crachá que vai ficar pendurado como os quadros das páginas de jornal.

Tarde da noite ainda devo passar lá, escondido e sozinho, para ver a redação pela última vez. Não seria justo não me despedir de quem teimou ser a mesma, mas uma companheira de personalidade que soube abrir a porta para ser quem eu me tornei. A porta do 802 do 807 da Paulista tem de fechar.

Comentários

  • Muito bonito! Tenho lembranças semelhantes de lugares onde trabalhei, onde existia uma atmosfera especial, típica daqueles dias do passado, com o modus operandi do passado e seus problemas e virtudes. Hoje tudo parece ser grandioso, estonteante e instantâneo. É como se não tivéssemos atrasos ou espera, tudo que precisamos ou queremos, rapidamente obtemos. Sem graça!

  • Boas lembranças são uma bela base para bons textos…
    Valeu por compartilhar esse texto bacana e essas boas lembranças.

  • Belíssimas recordações, Victor!
    Em 2006 (dez anos atrás, já!), quando participei de um concurso para fazer parte do time, pude constatar parte desse cenário… Lembro-me muito bem dos elogios à cafeteira – que era recém-adquirida, se não me falhe a memória, das estantes com coleções de miniaturas e, principalmente, desse pneu inflável… Lembro-me que eu sentei nele para ouvir umas instruções suas, então escutei um tremendo “puf” e me vi cada vez baixo… Daí você falou: “Não senta aí, não. Está furado!”. kkkk

  • Li o seu texto há alguns dias e o achei muito bom. Visualizei cada detalhe que você citou.. Depois li todos os outros textos e, hoje, reli o seu. Belíssimo! Como é bom ler o que escreve quem sabe escrever…
    Vale ressaltar que você, mais que o 802 do 807 resiste bravamente a todas as mudanças que a tempo impõe ao Grande Prêmio. Resiste, aliás, no sentido de permanecer na equipe e não no sentido de se opor às mudanças.
    Parabéns!
    Abraços de um admirador do seu excelente trabalho.

  • Sensacional, Victor. Belo texto. Às vezes um lugar se torna tão parte da vida da gente que vira um personagem na nossa história. Já tive sensações assim quando mudei de casa. Ou tive que trocar de carro. Bem legal ler o seu relato e ir lembrando das coisas que eu vi por lá nas poucas vezes que visitei a redação.

  • Victor que texto.
    Arrepiou no final. Que você tenha sucesso onde quer que esteja. Sempre acompanho o Blog e o Portal desde o começo quando chamava-se Warmup. Curti muitos textos seus no Portal e aqui no Blog.

    Sucesso Sempre.

  • Se eu não fosse músico, faria jornalismo. E só por “culpa” do que foi realizado, boa parte, entre essas simpáticas paredes.

    Compactuo muito com esse sentimento de respeito e gratidão demonstrado por vocês.

    Parabéns e obrigado.

  • Depois de ler dois belíssimos textos sobre essa sala – o seu e o do Gomes, já estou ficando com saudades dessa sala, das paredes, dos objetos…
    Diga que o Grande Prêmio só está mudando de endereço!
    Precisamos de vocês!

  • Victor, por óbvio o GP não acabou, ao contrário, nunca esteva tão pujante. A pergunta que cabe é: haverá uma nova redação ou tudo virou virtual agora? Um abraço e parabéns pelo lindo texto.

  • Uma honra ter conhecido esse lugar tão importante para a equipe de vocês. Paredes coloridas e miniaturas mil guardadas na memória.

  • Victor,
    Uma curiosidade, vocês vão agora trabalhar em outro escritório/redação?
    Como irá funcionar?
    Obrigado.
    Tudo de bom!
    Abs.,
    Rodrigo