O medo dos barões da Indy

[bannergoogle] SÃO PAULO | TE Myers, CG Fisher, JA Alisson e AC Newby sentiam a alegria que o alívio proporciona no último mês daquele ano. Aquele conflito de proporção mundial não gerado por eles enfim havia chegado ao fim e, sobretudo, não mais atrapalharia seus planos como nos últimos dois anos. Os quatro se encontraram em um local incerto e não conhecido em Miami. Também não se tem notícia do que beberam ou do quanto, mas certamente se sabe do que falaram.

Havia também uma necessidade de acabar com algumas fake news disseminadas pela sociedade local. Não foi um veículo de comunicação da Flórida a dar o furo no dia seguinte, mas um da cidade onde tinham seus negócios. Das rotativas da página 10, caderno de Esportes do The Indianapolis News, saiu a informação de que a data não seria transferida para quase dois meses depois, mantendo a tradição de maio, tampouco que sua extensão seria duplicada.

Entre um trago e um outro, talvez, acharam por bem ampliar a premiação e o número de contemplados: os dez primeiros mereciam uma graninha maior.

Não demorou nem duas semanas, ainda em dezembro, para que Myers recebesse uma missiva. “Eu construí o Chevrolet Special pouco tempo antes da guerra começar com a intenção especial de inscrevê-lo para Indianápolis. Estou com esse carro desde então aguardando o desenrolar dos acontecimentos”, escreveu RC Durant. Cliff, para os íntimos, era presidente da Chevrolet da Califórnia e filho de WC Durant, o então chefão da General Motors. Era de Cliff a garantia da primeira inscrição para a Indy 500 de 19.

1919.

Sem internet, e-mail e redes sociais, tentar marcar presença na prova não era das coisas mais simples. O período para que os pilotos se inscrevessem, então, era relativamente largo: mais de cinco meses. Deu tempo, pois, para que alguns europeus se animassem e fizessem frente à legião de americanos. O Indy Star chegou a mencionar, levemente hiperbólico, o embate intercontinental de “astros de uma galáxia inigualável” que estava por vir, destacando que “os carros da combinação europeia são novinhos em folha, feitos em Paris especialmente para a corrida em Indianápolis desde a assinatura do armistício, e fala-se que são muito mais rápidos e potentes que os melhores que a Europa mandou para este país até então”.

A Ballot et Cie resolveu botar para quebrar. Nada de carros com quatro ou seis cilindros em V: eram oito, em linha, “e espera-se que tenham um dos desempenhos mais sensacionais já vistos no Speedway”, pontuou o jornal.

No fim das contas, 43 inscrições surgiram até a noite daquele 1º de maio. A AAA – perdão pela aliteração –, American Automobile Association, entidade que regia as corridas à época, então definiu algo além da regra dos anos pré-guerra: não era só necessário atingir uma velocidade mínima, no caso de 80 mph (128,75 km/h); haveria um limite de 33 carros no grid. O sistema de classificação era de uma única volta rápida e permitia a cada piloto o máximo de três tentativas.

Os treinos livres eram uma farra e duravam até o dia 26. No dia seguinte, aconteceria a definição do grid. Mas como o mau tempo atrapalhou grande parte das equipes, a organização foi benevolente e estendeu a classificação por três dias, com uma mudança: quem conseguisse se qualificar no primeiro dia, uma terça-feira, teria seu lugar lindamente assegurado; aqueles que só deixassem a classificação para os dias finais, mesmo fazendo tempos melhores, largariam depois do último colocado do primeiro dia.

[bannergoogle]Vencedor em 1914, o glorioso francês René Thomas conseguiu o melhor tempo dentre os 11 que tentaram logo no dia de abertura e assegurou a pole. Na quarta-feira, Louis Chevrolet – sim, cofundador da montadora – foi o mais rápido, e mesmo com um tempo suficiente para ficar com o segundo lugar no grid, pegou a 12ª posição de acordo com as regras recentemente estabelecidas.

Para o dia final, restavam nove vagas disponíveis. Alguns dos 43 carros foram, ao longo do tempo, desistindo de participar porque quebraram durante os treinos ou não tiveram como arrumar o carro apropriadamente. Na prática, eram 36 no total. Pois bem. O pessoal começou a treinar para tentar a volta rápida. Jules Goux estava com boa velocidade até seu Peugeot ter um pistão quebrado, fazendo um rombo no motor. A equipe Premier ofereceu um motor reserva ao piloto francês – que não era qualquer um, não: era o ganhador da edição de 1913. O time de Goux passou a quinta-feira arrumando a peça em seu carro.

Enquanto isso, os demais iam preenchendo as vagas até que o grid se fizesse completo. Só que havia gente ainda tentando entrar na corrida.

Al Cotey já não vinha sendo nada brilhante nos treinos. Na primeira tentativa de se classificar com um Ogren Special, no segundo dia, cravou a insigne marca de 74.6 mph – abaixo, pois, da velocidade média mínima. O valente Cotey não se deu por vencido e tentou no terceiro dia. Melhorou, coitado, foi para 82.9 mph, mas não tirou o 33º, James M. Reynolds.

Dave Lewis vinha com toda a pinta de que conseguiria depois de passar um dia resolvendo os problemas do motor de seu Duesenberg. Foi lá para a classificação e registrava velocidades acima de 100 mph. Lá pelas curvas 3 e 4, o pobre viu o rolamento aquecer, as bielas perfuraram o cárter, e o sonho virar pesadelo.

No crepúsculo, surgiu Goux. Foi o tempo de ver se estava tudo OK com o novo motor, ir à pista e ver no que dava. Com uma volta a 95 mph, fez a torcida vibrar – sim, foi o que aconteceu segundo relatos – e pôs para fora o combalido Reynolds.

Naquele 29 de maio de 1919, nascia propriamente o que o mundo do automobilismo conhece por ‘bump’.

Para o registro, a corrida, disputada no dia 31 – não foi tradicionalmente em 30 por coincidir com o Memorial Day’ – foi vencida por Howdy Wilcox. Durante as voltas finais daquela Indy 500, havia uma empolgada bandinha já tocando ‘Back Home Again in Indiana’ em homenagem ao piloto nascido no estado.
René Thomas ganha edição de 1914 da Indy 500 (Foto: IMS)
René Thomas ganha edição de 1914 da Indy 500 (Foto: IMS)

A edição seguinte com uma situação de pilotos ‘bumped’ só foi acontecer em 1929, dez anos depois, para um grid de 33 carros. Em 1930, a organização liberou que 38 largassem, sem rifar ninguém. Aí em 1931, eis que apareceram 72 inscritos. Não havia como ser maternal neste caso, e permitiram um grid com 40. Para se ter uma noção da insanidade, foram necessários cinco dias de classificação. Com um mesmo número de inscritos em 1932, não contentes, prolongaram para oito os dias do ‘qualifying’. No ano seguinte, mais exagero: 42 vagas – sendo que outros 21 falharam em pegá-las – em um formato de absurdas dez voltas para formar a média de velocidade. Resultado: cinco mortos na corrida. Resolveram, por bem, voltar a limitar a 33 carros em 1934.

Fato é que o tempo passou, e Indianápolis foi sofrendo algumas alterações no esquema de classificação para se adaptar à modernidade e à necessidade – isso sem aprofundar a história de como a Indy 500 foi morta pela outra grande guerra nos anos 40. Com mais ou menos força, o ‘bump’ se manteve, ganhou um ‘day’, ganhou um apelido carinhoso (‘bubble’), ganhou a fama e se tornou a essência fundamental da formação do grid daquela que é a maior corrida do esporte. Porque, no fim das contas, pouco importa o pole ou quem forma a primeira diante do drama, da agonia, do sofrimento, do choro de quem se sente no calabouço da ausência ou da alegria que o alívio proporciona por garantir o convite àquela festa.

A vitória de 1995 de Jacques Villeneuve depois de tomar duas voltas por uma irregularidade nos pits é igualmente lembrada ao fracasso da Penske em colocar tanto Emerson Fittipaldi quanto Al Unser Jr., ambos vencedores em Indianápolis, na corrida.

Willy T. Ribbs, 1991, passou um calvário homérico para ser o primeiro negro a se classificar: cinco quebras de motor durante treinos e classificação.

Sebastián Saavedra, 2010, era carta fora do baralho e dentro de um hospital depois de ter se acidentado ao tentar voltar ao grid depois de ser ‘bumped’, mas em um dos episódios mais loucos de todos os tempos, Jay Howard e Paul Tracy conseguiram a proeza de se eliminarem ao tentar um novo tempo de classificação, irem pior e recolocarem Saavedra no grid.

Ano seguinte, 2011, e de novo o injustiçado Bruno Junqueira se via sem correr a Indy 500 quando a Foyt se debruçou aos milhões de Michael Andretti para ceder descaradamente sua vaga no grid e colocar Ryan Hunter-Reay, eliminado, dentro da prova.

James Hinchcliffe, ano passado, arrebatou uma das vagas da derrota ao lado de Pippa Mann. Por dias se falou que a Schmidt Peterson arrumaria um lugar, à Andretti, para o canadense. Olharam todos para Howard – aquele mesmo que havia perdido a vaga em 2010 –, companheiro de Hinch. Nada feito. Hinch ficou fora.

2019. No centenário do ‘bump’, eis que Roger Penske – o das vagas perdidas em 1995 – se une a Chip Ganassi e também a Andretti para lançar um pedido à Indy: que garanta às equipes e aos pilotos que fazem parte do campeonato todo vaga na Indy 500. A alegação, basicamente, é que o espetáculo não pode perder um piloto como Hinchcliffe, por exemplo, que faz bem ao show, e há o receio de patrocinadores irem embora – Michael citou o caso de que a DHL poderia não estar mais no carro de Hunter-Reay se este não tivesse corrido em 2011.

É pueril e tolo usar tais argumentos. A Penske sobreviveu ao que aconteceu há 24 anos e é a principal equipe não só da Indy, mas da América. Se a DHL resolvesse se pirulitar da Andretti, equipe que mais carros alinha na Indy 500, um outro patrocinador entraria. A Ganassi reduziu sua operação e continua sendo uma força tendo um piloto do calibre de Scott Dixon no time. E, por outro lado, a Arrow, apoiadora da equipe de Hinchcliffe, não só ficou na equipe como se tornou a patrocinadora-máster em 2019. Sam Schmidt nunca, jamais, em tempo algum, reclamou do sistema e pediu por mudanças.

O ‘bump’ deixou de existir nos tempos nebulosos que a Indy viveu face à separação promovida por Tony George em IRL e Cart, com todos se esforçando para manter a tradição dos 33 carros e evitar vexame. Agora, em curva mais do que ascendente, a categoria volta a encontrar prosperidade. Provavelmente serão 36 inscritos para buscar as 33 vagas deste ano – curiosamente os mesmos de 100 anos atrás –, e só não serão mais porque equipes como Juncos e Harding Steinbrenner não puderam/quiseram alinhar um segundo carro cada.

A Indy até tentou disfarçar e deu uma modificada: se até o ano passado, o sábado definia de vez quem eram os eliminados, neste ano a saga ganhou um novo contorno justamente para amenizar o discuido de um grande que teve um infortúnio. No primeiro dia do Pole Day, garantem-se no grid os 30 primeiros colocados; do 31º em diante, todos voltam à pista no domingo para uma tentativa só, no estilo do Fast Nine, na ordem do pior do dia anterior até o menos ruim. Sendo 36, seriam seis, pois, no limbo. A categoria criou esse ‘pré-bump’ que tende a ser um estraga-prazeres por limitar os ameaçados, mas só a prática vai atestar o erro da proposta que esconde o afago.

Os tempos não são díspares como os de 1919 ou 1995: há um chassi base, duas montadoras e equilíbrio. Mas quem tem mais dinheiro e competência segue levando vantagem. Isso já permite analisar, às vésperas de começar o primeiro treino no Speedway, que quem quer que pilote o carro da paupérrima Juncos – provavelmente Kyle Kaiser –; a estreante DragonSpeed e seu veterano piloto, porém ainda cru na Indy, Ben Hanley; e a mesma Pippa Mann que foi eliminada no ano passado, mas agora em uma equipe ainda menor, a Clauson, sejam os favoritos destacados para a degola que a Indy gera em seu grid. De modo que o pedido de Penske, Ganassi e Andretti, as três maiores esquadras da Indy, para ter lugar cativo nas 500 Milhas é não só espantoso, mas ínfimo, ridículo e cretino.

Evoluções são obviamente aplicáveis com o avanço dos tempos – não dá para ter oito dias de classificação e um mês de treinos livres. Só não é aceitável eliminar a razão de ser e estar de uma corrida por medinho de dois ou três. A Indy 500 não está lá para se curvar à riqueza e ao gosto dos barões, mas, tradicionalmente, abraçar quem se une como dá para tentar a oportunidade e tem ciência e respeito pelo que Indianápolis oferece – se se acharem no direito de pedir pra trocarem ‘Back Home Again In Indiana’ por um blues também serão atendidos?

Não conseguir se classificar para a Indy 500 dentro do universo que rege estes grupos, quaisquer sejam os cenários, seria mais do que merecido.

[bannergoogle] Há um aceno de Mark Miles, presidente da Indy, para atender o trio de magnatas. Nem precisaria de muito pensamento, mas talvez seja imprescindível o doutor ver o entorno da categoria e o retorno do público. Não é muito difícil fazer o básico, uma mera pesquisa para saber o que os fãs pensam, bem como qual seria o resultado. Mexer no ‘bump’ é, feita a proporção, é provocar um efeito tal qual Tony George fez: podar a escalada da Indy como um todo e gerar uma eclosão.

Ou ainda, buscar o que Myers, Fisher, Alisson e Newby fizeram há cem anos: esperaram como nunca pelo fim da guerra para dar sobrevida à Indy 500. Está na mão de Miles e seus comparsas evitarem um conflito de grandes proporções. Um homem quando vê o ‘bump’ da Indy 500 não quer guerra com ninguém.

Comentários

  • Roger Penske e Chip Ganassi afirmaram nesta semana que gostariam que todos os carros que disputam a temporada da Indy ja tivessem vaga garantida na Indy 500. No Paddock GP, entao, o tema foi pauta de debates

  • Que grata surpresa vê-lo escrevendo novamente! Havia perdido a esperança, pois o último post (Quem vai e quem vem) foi escrito há tanto tempo…
    Sobre a Indy 500, é “o” evento automobilístico de maio e que me desculpem os fãs da F1, mas Mônaco nada mais evoca que não seja saudosismo. Logicamente é importante e faz parte da história da F1, mas, especialmente neste ano, a Indy 500 promete infinitamente mais emoções.
    Victor, espero que escreva mais por aqui.
    Abraço.

  • Se o Tony George há alguns anos atrás não pensou duas vezes em separar da CART e fundar a IRL, eu diria que o atual dirigente da Indycar também não pensaria de fazer o mesmo e dizer para Penske, Andretti e Ganassi irem caçar coquinho.

    A Indy 500 é mais importante que estas equipes e com certeza as equipes dependem da Indy 500.

    Acho que não tem que dedicar vagas cativas na corrida, até porque ela segue com regras diferentes do campeonato e devem continuar assim.

    Se um piloto que disputa um campeonato inteiro é incompetente para se classificar na Indy 500 não merece ser um piloto de campeonato inteiro.

    Muitas vezes dá mais valor para o vencedor da Indy 500, do que pelo campeão do campeonato, então porque dá vagas cativas???

    Fora que tem muita equipe na Indycar que não tem a mínima condição de disputar o campeonato, mas disputa e que correrá na Indy 500, pois são especialistas e competentes para classificar seus carros, só acho que deve manter o Bump Day.

    A única coisa errada é esta corrida no circuito misto em Indianapolis, corrida chata pra cacete.

  • Só escrevo para reclamar da longa e tenebrosa ausência. Vim a este espaço semana sim, semana também para saber de novidades e comentários saídos da sua pena. “No te olvides”.